Quem sabe o que ouve, nunca esquece. E nem deve esquecer. No último sábado, Edenílson fez questão de paralisar a partida contra o Corinthians para alertar o árbitro de que teria sido ofendido com termos racistas pelo lateral adversário, Rafael Ramos. A esse fato, seguiu-se um imenso debate geopolítico, idiomático e linguístico sobre o que teria sido dito pelo jogador português que defende o Coritinhians -- poderia ser "malaco", talvez "caralho", quem sabe "meu cavaco na tua cumbuca", entre outras mutações dessa sinuosa língua esmerilhada por Eça de Queiroz e Machado de Assis. Acontece que falar "macaco" é coisa que já não cabe, sobretudo publicamente, e hoje mesmo aqueles que gostariam de usar o termo impunemente sabem que fica muito feio de admitir em sociedade.

Edenílson foi cobrado para que se explicasse. Todos queriam ouvir a vítima, como se nos coubesse alguma autoridade para lhe exigir qualquer manifestação pública. O jogador registrou boletim de ocorrência, postou mensagem em suas redes sociais, mas não falou aos microfones -- e nem precisava. Aos negros que vivem no Brasil sempre são exigidas algumas explicações: "Tem certeza do que ouviu?", "Isso é uma acusação muito grave", "Por que estava andando nesse bairro essa hora da noite?", "Levanta o boné pra eu ver a tua cara".

Não basta ser vítima de racismo, é preciso ser desacreditado, na tentativa de lhe empurrar de volta para o seu lugar na pirâmide social de um país que até hoje, na prática, é escravocrata. Se todas as dúvidas são levantadas quando um cidadão negro se expõe como vítima de racismo em um ambiente midiático como o futebol, imaginem o que acontece na abordagem rotineira em qualquer esquina de qualquer periferia do Brasil.

Na última noite, enquanto Porto Alegre esperava o ciclone que talvez se tornasse furacão, Edenílson marcou os dois gols da vitória sobre o Independiente Medellín. Após o primeiro gol, não hesitou em arrancar a camisa, mostrar o corpo negro sob o céu que ameaçava desabar e erguer o punho direito para cima. Teimam em nos calar, mas não podem deixar de nos ver, parecia dizer. Essa comemoração, imagem que carrega todas as fundações e deformações do Brasil, deve ser vista como um marco de identidade, e não apenas pelos colorados: a camisa deixada na grama nunca foi tão bem representada. Afinal, essa não é a história que nos foi ensinada. Essa é a história que continua acontecendo.